sábado, 23 de janeiro de 2010

Madrugada


 Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
uma roseira entrelaçada
uma videira de esperança
tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem por força da vontade
de trabalhar nunca se cansa.

Vou pela rua
desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que se deságua no Rossio.

Eu sou um homem na cidade
que manhã cedo acorda e canta
e por amar a liberdade
com a cidade se levanta.


Vou pela estrada
deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresça na vela da canoa.

Sou a gaivota
que derrota
todo o mau tempo no mar alto
eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.

E quando agarro a madrugada
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada
um malmequer azul na cor.

O malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém
o malmequer desta cidade
que me quer bem que me quer bem!

Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis que me quer bem!


"Ary dos Santos" 

domingo, 17 de janeiro de 2010

A velha Ponte

PONTE DE VALE DE TELHAS S/RIO RABAÇAL.

Trata-se de uma ponte de origem romana, profundamente transformada nas épocas medieval e moderna. Tem um tabuleiro em cavalete lançado sobre o rio Rabaçal, com uma largura máxima de cerca de quatro metros, assente em cinco arcos de volta perfeita, em cantaria, com pegões cegos. O arco central é o que regista maior amplitude enquanto os restantes são de menores dimensões mas desiguais entre si, sendo o mais próximo da margem aquele que tem uma abertura mais reduzida.
presenta quatro talha-mares triangulares de ambos os lados da ponte, altos, escalonados e de remate piramidal, implantados no espaço entre os arcos. Conserva seis gárgulas, uma por cima de cada talha-mar e as duas restantes por cima dos arcos mais próximos da margem.
O pavimentoé em lajes de granito e conserva um parapeito e guardas em cantaria. O aparelho dos paramentos é em fiadas pseudo-isódomas, mas revela os sucessivos arranjos ao incorporar silhares com marca de "forfex" e outros siglados. O intradorso do arco preserva uma série de agulheiros para encaixe dos cimbros.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Lágrimas



Saudoso já deste Verão que vejo,
Lágrimas para as flores dele emprego
Na lembrança invertida
De quando hei-de perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
Em que hei-de errar, sem flores,
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra. 



"Ricardo Reis (Fernando Pessoa)"

domingo, 3 de janeiro de 2010

Simbolos


Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. –
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes.
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...

Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria – pobre figura de miséria e desamparo! –
Que o namorado voltasse para o costureira.

"'Alvaro de Campos"(Fernando Pessoa)